O baiano João Saback, de 77 anos, começou a interpretar o personagem por acaso –
No meio do brilho das árvores, dos corredores lotados e das filas que serpenteiam os shoppings de Salvador, quatro homens vivem uma dupla existência nos últimos meses do ano. De longe, é possível ver a barba branca, as roupas pesadas e o sorriso treinado para acolher crianças ávidas por um presente. Mas quando tiram o gorro, os papais noéis penduram o casaco e voltam a ser quem são: professores aposentados, engenheiros, ex-servidores públicos, pais e avôs.
Com 77 anos, o baiano João Saback começou a interpretar o personagem por acaso. Ele estava acompanhando o neto em uma seleção para comerciais e terminou contratado. “Não demorou uma semana e eu já estava fazendo propagandas”, lembra. Ele já foi fuzileiro naval, professor e servidor do Tribunal de Contas.
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O Papai Noel veio pouco depois dos primeiros trabalhos como modelo, embalado por participações em campanhas e pelo costume de fazer o personagem na casa de amigos. “Por causa da barba, sempre disseram que eu era Papai Noel”. Desde então, foram presenças em shoppings, residências e ações beneficentes. Hoje, prefere as visitas a creches, escolas e eventos solidários. “A alegria que o pessoal tem quando me vê vestido me basta”, diz.
Na vida real, João gosta mesmo é de viajar sem destino certo com a mulher, com quem está casado há 53 anos. O objetivo é quase sempre sair para pescar na Linha Verde, rodovia litorânea da Bahia que liga Lauro de Freitas ao Litoral Norte do estado. “A coisa que eu mais adoro é viajar por aí com minha mulher”, conta o marido da mamãe noel.
Além das apresentações presenciais, João encontrou outra forma de manter viva a fantasia natalina: ele grava vídeos personalizados para crianças, chamando cada uma pelo nome e enviando mensagens sob medida. Os pais encomendam as gravações para surpreender os pequenos, que recebem o “alô” direto do bom velhinho.
Fora da roupa vermelha, João também gosta de fazer figuração em comerciais. “Eu já fui até jogador de dominó em propaganda”, lembra. Ele diz que a vida longe do personagem é marcada pela tranquilidade da aposentadoria. “Eu não preciso mais correr”.
Morador de Salvador há mais de 40 anos, o engenheiro civil mineiro Josias Araújo, de 66 anos, começou a distribuir brinquedos muito antes de se assumir como Papai Noel. Em 1993, viajava com a irmã para comunidades carentes com duas caminhonetes cheias de mini panetones e brinquedos. O personagem veio só em 2016, quando a filha viu um anúncio de emprego em um shopping. Ele deixou a barba crescer e se candidatou.
Josias conta que equilibrar as construções com a fantasia vermelha já foi mais fácil, mas o trabalho como Papai Noel se tornou parte essencial do fim de ano. Nos dias de maior movimento no shopping, já atendeu quase três mil crianças. “É cansativo”, afirma. “Você tem que arranjar uma borrachinha para puxar a boca e fazer menção de riso”, brinca o engenheiro, que já foi contratado como Papai Noel por todos os shoppings da capital baiana.
Para ele, o mais difícil nunca são as crianças. “O problema são os adultos”, diz. Ele se refere aos que ignoram o humor ou particularidades das crianças em busca da foto perfeita. “Não é fácil, mas a gente dá um jeito”. O espírito natalino está com ele. “Quando eu sinto alguém muito para baixo, eu procuro aconselhar. Às vezes, o Espírito Santo vem em mim e me diz: essa daí está precisando”.
Aos 81 anos, Leopoldo Cruz tem orgulho da própria trajetória. Funcionário público aposentado, ele virou figura conhecida em comerciais e campanhas institucionais. “Eu sempre gostei de aparecer porque quando eu estou num comercial, eu sinto que estou vivo”, diz.
A estreia como Papai Noel foi em um shopping de Salvador, há cinco anos. Desde então, ele já passou por diversos centros comerciais presencialmente e com fotografias em campanhas. A preparação inclui barba aparada no mesmo barbeiro do bairro da Lapinha há anos. “Eu não gosto de dar a minha garganta em qualquer mão”, justifica brincando.
Leopoldo guarda com carinho bilhetes que recebe das crianças: lembretes para não esquecer presentes, desenhos e pedidos extras de irmãos. Guarda tudo. “Eu também fui criança, e hoje continuo sendo”, conta. Com uma vida tranquila, ele gosta de conversar na porta de casa e acompanhar o movimento do bairro.
O aposentado diz se sentir muito contente de fazer parte de um time crescente de modelos negros que dão vida ao personagem do folclore natalino ocidental. “Parecia que o Papai Noel tinha que ser branco, mas não sei quem inventou isso”, exclama Leopoldo. “Eu me sinto muito gratificado de representar os negros, principalmente numa cidade como Salvador, que é tão preta”.
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O primeiro
O baiano Ubirajara Pereira foi quem deu início a essa quebra de paradigma. Bira, como é conhecido, é considerado o primeiro homem negro a interpretar o personagem do Papai Noel em um shopping de Salvador. Ele admite que desde criança sempre sonhou em encarnar o bom velhinho, mas reconhece que nunca teve oportunidade. “Quem iria chamar um negro para isso?”, provoca. Aos 69 anos, aposentado e com uma vida fora dos holofotes, ele viu no papel a chance de realizar o sonho.
Quando foi selecionado, Bira não acreditou que a cor da pele não seria mais uma barreira. “Tudo tem que ter uma mudança”, aponta. “Eu estou sendo aquela pessoa que todo mundo está olhando, então, depois de mim, vai haver oportunidade para outros negros, que também vão poder fazer um bom trabalho, como o meu”.
Desde então, Bira trabalha dando vida a um Papai Noel muito próprio. Nada de “ho ho ho”, a risada clássica do velhinho importado do frio. Como o primeiro Natal para o qual havia sido contratado tinha o tema Madagascar, ele reinventou o personagem. “Se eu vim da África, não do Polo Norte, não sinto frio. Tenho que ser diferente”. E assim surgiu seu “ha ha ha”, marca registrada do Noel que criou para si.
O baiano Ubirajara Pereira
Sobre preconceito, fala com franqueza. Ele conta que uma vez uma senhora o viu pela primeira vez e estranhou. “Papai Noel preto?”. Também guarda histórias comoventes. Como a do menino autista que ia visitá-lo todos os dias no shopping durante a pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2021. Ele não podia abraçar ninguém, mas simulava o gesto, para que o menino se sentisse acolhido. “Minha alegria é ver a criança sorrindo”.
Pai do ator Fabrício Boliveira, Bira segue a leveza fora do palco. Frequenta Arembepe, vila de pescadores localizada no município de Camaçari, visita amigos e mantém o hábito de conversar com todo mundo. Ele afirma que o personagem do Papai Noel o acompanha mesmo sem a roupa. “O povo diz que minha risada entrega”, brinca.
Afeto
Ser Papai Noel na Bahia exige mais do que barba e fantasia: demanda resiliência, paciência, improviso, preparo físico e, sobretudo, afeto. Todos falam do peso da roupa, do calor, das longas horas sentados, do esforço de manter o humor quando a fila parece interminável. Mas falam também de algo que não cansa: o brilho no olhar das crianças. João gosta de repetir que, no fim, ninguém acredita que ele seja um ator. Para as crianças, ele é Papai Noel de verdade. “Apertam a minha barriga, veem que é real”, diz.
A barba é verdadeira para todos os modelos. João trata a dele com rigor diário. O papai noel lava sempre com xampu infantil para manter os fios limpos, macios e cheirosos.
Josias admite que ao longo do ano prefere manter só o bigode e começa a parar de aparar os pelos do rosto a partir de setembro. Assim, em dezembro já pode ostentar uma barba digna de um morador do Polo Norte. O Papai Noel também deixa a barba sempre bem cuidada para provar às crianças que é verdadeira, segurando o bracinho delas antes que agarrem. “Algumas puxam com força”, conta rindo.

Josias admite que ao longo do ano prefere manter só o bigode
Entre as histórias favoritas de Josias está a da menina que ia ao shopping todos os dias para encontrar com o Papai Noel. Quando soube que ele “voltaria para o Polo Norte”, garantiu: “Eu já mandei minha mãe botar uma cama no meu quarto para você morar lá”.
Leopoldo também diz que as histórias são muitas. A preferida aconteceu este ano: um menino pediu presente porque o pai estava desempregado. Ele disse que a criança receberia se tivesse passado de ano.
O menino ficou feliz e depois, completou: “Leva também uma boneca Barbie para a minha irmã”. “Os pais riram na hora, mas ficaram preocupados de ter que cumprir aquela promessa”, diz Leopoldo.
Fora do período natalino, cada um deles retoma a rotina menos agitada, mas já sabendo que, no fim do ano, o compromisso com o bom velhinho volta a chamar. Leopoldo diz que carregar o personagem acaba sendo quase natural na fase da vida em que está. “O idoso é uma criança, então a gente entende esse encanto de perto”.
