Bilbao, norte da Espanha. No principal time da cidade, Athletic Club, todos os jogadores compartilham algo em comum: nasceram ou foram formados no País Basco, região que se estende pelo norte da Espanha e o sudoeste da França. Nenhum estrangeiro veste essa camisa. A regra não escrita existe há mais de um século e é chamada pelo clube de “filosofia”. Para uns, é um ato de defesa da identidade basca; para outros, uma forma disfarçada de racismo e exclusão.
Fundado em 1898, o Athletic nasceu da união entre jovens bascos e operários britânicos que trouxeram o futebol a Bilbao. Em 1911, depois de perder — e mais tarde recuperar — um título por ter escalado jogadores de fora da região, o clube decidiu contratar apenas atletas locais. Desde então, passou a representar o nacionalismo basco, especialmente durante a ditadura de Francisco Franco, entre 1939 e 1975, quando o idioma e o escudo da comunidade autônoma foram reprimidos.
Por muitos anos, essa limitação não foi um problema, já que os adversários também mantinham elencos essencialmente locais. Barcelona e Real Madrid, por exemplo, só começaram a trazer jogadores não espanhóis com mais frequência a partir dos anos 1970, e o rival regional Real Sociedad esperou até 1989 para ter seu primeiro atleta não basco. Nos primórdios do futebol espanhol, o Athletic chegou a ser o clube mais vitorioso do país, com quatro títulos da liga e treze Copas do Rei.
Hoje, em um futebol globalizado, essa política se tornou uma exceção. O País Basco tem pouco mais de três milhões de habitantes, o que obriga o Athletic a buscar, ano após ano, os 27 jogadores mais talentosos da região. E quando algum deles se destaca em San Mamés (nome do bairro e do estádio da equipe), logo desperta o interesse de gigantes europeus. É o caso de Javi Martínez, transferido em 2012 para o Bayern de Munique, Ander Herrera, que trocou o time pelo Manchester United em 2014, e Kepa Arrizabalaga, hoje no Arsenal.

A “filosofia” e o nacionalismo basco
O site oficial do clube define que o Athletic “só pode inscrever jogadores nascidos ou formados futebolisticamente nas sete províncias do País Basco — Biscaia, Gipuzkoa, Álava, Navarra, Labourd, Soule e Baixa Navarra”. A região sempre foi uma das mais rebeldes e separatistas da Espanha. Assim como ocorre na Catalunha, seus habitantes tendem a se sentir mais bascos do que espanhóis, falando uma língua isolada chamada euskara, totalmente distinta do castelhano, e possuindo uma forte identidade regional.
A ditadura de Franco impôs restrições severas à comunidade autônoma: o euskara foi proibido em conversas públicas, na educação e nos jornais. Também se tornou ilegal registrar recém-nascidos com nomes bascos, e lápides escritas no idioma foram removidas. Mas isso aproximou ainda mais os bascos das tradições que o Athletic cultiva desde o início do século XX. Uma pesquisa na região mostrou que 76% dos torcedores do Athletic Bilbao prefeririam ser rebaixados da primeira divisão espanhola a abrir mão dessa política.
O diretor-geral Jon Berasategi explica que o clube mantém “a essência dos fundadores” e que a política de contratações “não é uma regra, mas uma decisão natural”.
Com a expansão da imigração, porém, o significado de “ser basco” começou a mudar. O time só teve seu primeiro jogador negro, Jonas Ramalho, em 2011, um século após a consumação da “filosofia”. Filho de mãe basca e pai angolano, Ramalho enfrentou resistência de parte da torcida, mesmo sendo nascido em Bilbao. “Não importa a cor da pele. O fato de ter nascido aqui me faz basco”, afirmou ele em entrevista à revista Panenka.

Os negros que brilham no Athletic Bilbao
Alguns anos depois, os irmãos Nico e Iñaki Williams, filhos de imigrantes ganeses, se tornaram as estrelas do novo Athletic. Iñaki foi o primeiro negro a marcar um gol profissional pelo clube. “Todos os vizinhos são muito amáveis conosco, somos estrangeiros, mas nos tratam como parte da família”, contou o jogador, que por outro lado já denunciou ofensas racistas recebidas em estádios da Espanha.
Nascido e criado em Bilbao, Iñaki encarna a contradição do time: é símbolo da identidade local e, ao mesmo tempo, prova de que ela não precisa ser étnica. Seu irmão mais novo, Nico, campeão pela seleção espanhola, aproximou torcedores que por décadas viam o Athletic como um bastião de isolamento.

“Há quem diga que somos xenófobos porque não temos jogadores de fora. Não é isso”, afirma um torcedor na série documental Bairros, do canal do YouTube Peleja. “Queremos gente que se sinta daqui. Se um brasileiro vier, tiver um filho aqui, e ele nascer aqui, pode jogar. Mas contratar alguém de fora só porque joga melhor? Não”.
A filosofia de exclusividade já custou reforços importantes. O clube perdeu a chance de contratar o atacante Marco Asensio, nascido em Mallorca mas com pai basco, e desperou o interesse do uruguaio Diego Forlán, que declarou em 2019: “Eu teria adorado jogar pelo Athletic, minha avó nasceu em San Sebastián”. Ambos foram vetados pela política. “Ela não é uma regra para excluir, e sim para fortalecer”, justificou o ex-presidente Aitor Elizegi ao defender a contratação da zagueira alemã Bibiane Schulze, tataraneta de um antigo jogador basco.
Identidade, xenofobia ou ambos?
Para os torcedores, essa filosofia consiste em uma afirmação cultural que se opôs a um regime autoritário. “O que mais agravou foi o momento da ditadura, quando as culturas foram silenciadas”, recorda um morador de Bilbao no documentário do Peleja. “O Athletic passou a ser parte da cultura basca, o que nos manteve unidos. Bilbao veste o vermelho e o branco. Todos os balcões tiram a bandeira para fora”, descreve outro torcedor. “O estádio é como um templo dentro da cidade”.
Mas há quem veja na tradição um paralelo com a política separatista e anti-imigração de parte do movimento basco. Permitir que apenas um determinado grupo — neste caso, pessoas de origem basca — possa trabalhar para a instituição parece contradizer o princípio básico do direito de qualquer profissional sobre estar livre de todo tipo de discriminação.
Mesmo assim, os dirigentes do Athletic afirmam combater essas acusações de racismo e exclusão. Já declararam várias vezes que sua política não é contra outros grupos, mas a favor de sua própria identidade, de valores que se opõem ao futebol transformado em um negócio movido apenas por resultados.
Afinal, a “filosofia” deu resultado?
As glórias do Athletic, como diz o hino do decadente São Paulo Futebol Clube, vêm do passado. Apesar de nunca ter sido rebaixado e acumular 36 títulos nacionais, a equipe parece não ter conseguido acompanhar a modernização do futebol; tem apenas um título nos últimos 40 anos. Seu triunfo mais recente foi a Copa do Rei de 2024, vencida nos pênaltis sobre o Mallorca.
Os princípios adotados pelo clube acabaram, de forma natural, gerando uma prática que pode ser vista como discriminação racial. Contudo, enquanto muitos clubes viraram empresas que só visam ao lucro, distantes das comunidades que os originaram, o Athletic Bilbao pode ser uma expressão maior da identidade basca e de uma luta contra o seu apagamento, no país mais separatista da Europa.
“Quando você é diferente em um mercado onde todos fazem o mesmo, sua camisa vale mais”, disse Andoni Zubizarreta, ex-goleiro do clube e do Barcelona, ao New York Times. “Os torcedores investem mais porque você é único”.
