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Relação com locadoras, por si só, não explica dinheiro suspeito de deputados do PL

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Por Fábio Pannunzio

A Polícia Federal encontrou R$ 430 mil “esquecidos” no armário de um flat do deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL, um homem pobre de marré, a julgar pela declaração de bens que entregou à Justiça Eleitoral três anos atrás.

Os funcionários dos gabinetes, mesmo os de salário mais modesto, movimentaram uma montanha de dinheiro – R$ 28 milhões, segundo a Polícia Federal.

Há diálogos, captados não se sabe de que forma, em que o parlamentar diz que vai “pagar por fora” despesas que não são completamente descritas. Repare: “pagar por fora”.

Carlos Jordy, segundo o próprio irmão, é um homem de vida complicada, com um passado comprometedor. Entre tantas coisas pesadas, há a acusação de ter se valido da assinatura de um morto para liberar emendas no valor de quase R$ 5 milhões para uma ONG fluminense para lá de suspeita chamada Instituto Realizando o Futuro.

Tudo muito, muito suspeito mesmo – ainda mais porque o assunto diz respeito a parlamentares moralistas que usam a corrupção dos outros como arma retórica – a da esquerda –, mas fazem vistas grossas para o roubo de joias, raspadinhas e o suborno na compra de vacinas.

Quando a Polícia Federal bateu na porta da casa de ambos, buscava elementos para provar que os deputados do PL tinham negócios com uma pequena locadora de fachada, a Harue Locação de Veículos Ltda, que supostamente lavava dinheiro de corrupção emitindo notas fiscais sem prestar os serviços.

Os dados da relação entre Sóstenes, Jordy e a Harue são públicos e podem ser facilmente perscrutados nas páginas de transparência da Câmara Federal. E foi a partir dessa relação comercial que a operação Galho Fraco foi deflagrada.

Ocorre que, observados com lupa, os números registrados na contabilidade da Câmara não amparam nem minimamente as suspeitas que levaram o ministro Flávio Dino a autorizar a busca e apreensão – muito menos a pretendida prisão de Sóstenes Cavalcante, que foi negada pelo ministro.

Com o auxílio de alguns scripts python (uma linguagem de computador), levantei todos os dados das duas locações. Meu objetivo era entender como os espertalhões bolsonaristas enganaram os mecanismos de fiscalização da Câmara para se locupletar com verba de representação tomada de volta de falsos fornecedores.

Mas o que os números nas planilhas mostraram é que, pelo menos no que toca à regularidade das diversas transações visando a locação de veículos de representação, não parece haver absolutamente nada de anormal, salvo uma formalidade fiscal ou outra.

Foi o que disseram os dois deputados – e ninguém acreditou. Nem mesmo eu, que tratei de logo fazer um post irado reproduzindo o clamor e a indignação que tomaram conta do País.

Em coletiva, Sóstenes Cavalcante tenta explicar origem do dinheiro encontrado pela PF

O que dizem os números

Embora a Polícia Federal considere apenas o período entre 2020 e 2024, minha prospecção abrangeu um período muito maior – os últimos dez anos. Sóstenes Cavalcante alugou carros da empresa entre dezembro de 2017 e abril de 2023. Nesse período, a Câmara pagou à locadora um total de R$ 337.613,00, valor maior do que o apontado pela PF em seu relatório por causa da extensão da análise no tempo.

Foram realizados 87 pagamentos, sendo o menor de R$ 2.213,00 e o maior, de R$ 4 mil. A média mensal foi de R$ 3.975,73. São valores compatíveis com o mercado de locação ou assinatura de veículos.

Carlos Jordy foi cliente da empresa entre março de 2019 e abril de 2023. Nesse período a Harue recebeu da Câmara R$ 281,4 mil em 68 pagamentos mensais. O valor médio foi de R$ 4,2 mil por mês – nada exorbitante se comparado com o que o mercado cobra de empresas e particulares para o mesmo tipo de serviço.

Isso me faz questionar: valeria mesmo a pena e o risco de reunir uma dúzia de cúmplices para dividir um bereré de quatro mil reais por mês?

A soma dos pagamentos reembolsados aos dois deputados alcança R$ 619.013,00. Anote esse número.

O que a PF disse a Flávio Dino

A Polícia Federal investigou a movimentação financeira dos funcionários dos dois parlamentares. Ao pedir autorização para a busca e apreensão da sexta-feira 19/12, informou que localizou um tráfico de dinheiro sem origem que chegava à casa de dezenas de milhões. E “mandou a brava” para Flávio Dino com os seguintes argumentos:

O assessor do PL Adailton Oliveira dos Santos teria, segundo o levantamento da PF, recebido em suas contas bancárias R$ 11.491.410,77 em créditos, dinheiro sem origem nem destinatários claros.

Uma parte desse dinheiro, R$ 2.789.526,93, foi remetida a “beneficiários não identificados, sob a rubrica “NOME NÃO IDENTIFICADO””.

Na conta de Florenice Santana entraram R$ 3.932.991,67. Uma parte desse dinheiro, R$ 599.379,90, foi transferida para “beneficiários não identificados, sob a rubrica “NOME NÃO IDENTIFICADO””.

Itamar de Souza Santana, assessor de Carlos Jordy, recebeu em sua conta-corrente R$ 5.907.578,17. Alguém que não foi identificado recebeu uma parte dessa bolada – R$ 640.020,00.
Segundo a Polícia Federal, “o volume e a natureza das transações revelam incompatibilidade com a capacidade econômica ostensiva de ITAMAR DE SOUZA SANTANA, impondo aprofundamento da análise”.

O sobrenome Santana aparece repetidas vezes na peça, o que fez com que as autoridades policiais passassem a suspeitar que essa família também tem as feições de uma organização criminosa.

Ressalte-se aqui que muitos nomes aparecem na investigação sem que seus papéis e funções no esquema sejam minimamente descritos. Ao final da leitura da peça, fica a sensação de que os nomes foram sendo jogados no balaio de imprecisões para impressionar – e impressionam mesmo.

Valdir Cesar Torres, por exemplo, teria sido o autor de ao menos duas transferências vultosas para os Santana, no valor de R$ 130 mil. A Polícia não sabe, ou ao menos não descreve, quem vem a ser e o que fazia Valdir no contexto da organização criminosa. E isso se repete com vários outros nomes que aparecem na petição ao STF.

Andrea de Figueiredo Desiderati, que também surge sem categorização, recebeu R$ 6.602.061,14 em créditos e debitou R$ 6.690.329,17  “com identificação de recursos oriundos da Câmara dos Deputados”. Mas a investigação não explica quem é nem o que fazia essa pessoa no contexto das transações suspeitas.

A petição encaminhada a Flávio Dino enumera três motivos para desconfiar dessa gente: “incompatibilidade dos valores movimentados com os rendimentos lícitos dos envolvidos; fracionamento de saques e depósitos em quantias não superiores ao valor de R$ 9.999,00; e identificação dos principais remetentes e destinatários dos recursos como sendo servidores comissionados da Câmara dos Deputados, vinculados aos gabinetes dos parlamentares federais SÓSTENES CAVALCANTE e CARLOS JORDY”.

Foi um achado grave e importante, provavelmente feito a partir de registros do COAF. O problema é que não existe um elo claro entre a dinheirama que irrigou as contas dos funcionários de Sóstenes e Jordy e os negócios da locadora Harue.

Contra a locadora, a PF argumenta que ela tentou dissimular os indícios de uma suposta atividade criminosa mudando seu nome de fantasia três vezes: passou de MOBILE RENT CAR para Alfa Auto Car Locação de Veículos Ltda, e posteriormente para Harue.

O relatório da PF não declara, mas o CNPJ da empresa permaneceu o mesmo – daí a possibilidade de rastrear com facilidade todas as transações entre ela e a Câmara Federal.

Outro argumento dos investigadores para apontar a empresa como uma espelunca de fachada foi a descoberta de que ela não funciona mais no local que aparece em seus registros cartoriais: “em diligência in loco, a equipe policial constatou que a empresa não funciona mais em seu domicílio, o que permite concluir a dissolução irregular da empresa (SIC)”, afirma a petição.

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Ministro Flávio Dino. (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

Mas qual o link entre essa locadora e a lavagem de dinheiro?

Na petição ao Ministro Flávio Dino, a PF afirma, mas sem estabelecer uma conexão imediata, que “dissolvida irregularmente, a referida sociedade empresária continua a receber pagamentos feitos pelos parlamentares Deputado Federal CARLOS JORDY (licenciado) e Deputado Federal SÓSTENES CAVALCANTE (em exercício), os quais são reembolsados como despesas pagas com cota parlamentar, relativa a locação ou fretamento”

Ocorre que há uma disparidade enorme entre os valores efetivamente pagos à Locadora Harue e o volume de dinheiro que circulou pelas contas dos assessores dos dois parlamentares.

O valor total pago pela Câmara, como vimos anteriormente, foi de pouco mais de R$ 619 mil (aquele número que eu pedi pra você lembrar), contra uma movimentação suspeita de R$ 28 milhões – quase 45 vezes maior. Nem mesmo contando em dobro entradas e saídas a contabilidade mágica da Harue consegue explicar a dinheirama que circulou pelos gabinetes – tampouco autoriza a suposição de que o esquema criminoso se baseava nessa relação.

Por outro lado, os indícios de enriquecimento ilícito juntados à investigação e as evidências de lavagem de dinheiro denotam a existência de fatos criminosos – ou avalizam a suspeita de que algo muito estranho está transformando modestos servidores em prósperos aristocratas.

Dinheiro encontrado pela PF na Operação Galho Fraco

De onde vem o dinheiro?

Eis aí uma pergunta que permanece sem resposta. Na cobertura feita pela imprensa, todos os caminhos levaram à suposição de que a locadora é a porta de entrada da lavanderia de Jordy e Sóstenes. Mas olhando com atenção os números, eles não nos dizem nada disso.

Alguns dos argumentos alinhavados pela PF não passam de ilações Por exemplo, a versão propalada de que o tamanho da empresa, pequeno diante da grandiosidade dos concorrentes, é mais um indício de que ela é parte de uma perigosa organização criminosa.

O relatório da PF afirma que, pelo tamanho da frota, “verifica-se uma discrepância, haja vista a Harue ter somente 5 veículos em sua frota,[quando] por outro lado, as empresas no Rio de Janeiro RJ têm sempre frota superior a 20 veículos”.

Ser pequeno, no entanto, não implica ser criminoso.

Os recibos dos pagamentos reembolsados pela Câmara demonstram que de fato essa locadora teve poucos clientes no período analisado – supostamente em função da frota diminuta. Ao contrário de empresas como a Pantanal Veículos Ltda, que aluga ou alugou carros para 277 deputados nos dez anos analisados por mim, a Harue atendeu apenas 10 parlamentares de sete partidos diferentes, do PL ao PT, com preços na mesma faixa.

Já foram clientes dela Danilo Forte, Dr Flávio, Marco Tebaldi, Max Beltrão, Omar Bertoldi, Vermelho, Waldenor Pereira e Wolney Queiroz. A PF não buscou elementos para incriminar nenhum deles  por lavagem de dinheiro.

Outros indícios

A busca e apreensão autorizada pelo ministro Flávio Dino conseguiu recolher elementos que podem ajudar a entender de onde vem o dinheiro dos funcionários dos dois parlamentares.

Um dos mais importantes foi a descoberta de quase R$ 500 mil no armário do flat de Sóstenes Cavalcante. O achado trouxe imediatamente à memória a Operação Lunus, que em 2002 matou a candidatura de Roseana Sarney à presidência da República, e a Tesouro Perdido, que em 2017 botou na cadeia o então superpoderoso Geddel Vieira Lima, encerrando sua carreira política.

Dinheiro encontrado com Geddel Vieira Lima, em 2002
Dinheiro encontrado com Geddel Vieira Lima, em 2002

Sóstenes disse que vendeu um apartamento e esqueceu de depositar o dinheiro, como se fosse normal alguém ficar com essa quantidade de cédulas em casa sem se lembrar delas. Ainda mais um sujeito que deve ter alguma dificuldade para pagar os boletos, visto que na última eleição declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de menos de R$ 5 mil.

Diante da alegação, a pergunta é inevitável: como alguém que não tinha nada há 3 anos pode ter comprado um apartamento que revendeu agora por um valor quase 80 vezes maior?

Políticos gostam de dinheiro e costumam dar desculpas esfarrapadas para explicar o inexplicável  quando são pegos com a boca na botija. Foi o caso de Sóstenes Cavalcante, que, ou mentiu ao declarar à Justiça Eleitoral que era pobre de marré, ou mente agora para dizer que não é tão rico quanto parece.

Encaminhei o texto desta matéria aos implicados e pedi para ouví-los e contestarem o que quiserem. Assim que eu tiver as respostas, o texto será editado para contemplá-las.

As planilhas podem ser consultadas na íntegra no nosso site. Para acessá-las, basta clicar aqui.



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