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Relação suspeita entre desembargador e JBS trava pagamento a 3 mil trabalhadores

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Por Heloisa Villela

O Conselho Nacional de Justiça recebeu, nesta segunda-feira (1), uma notícia-crime contra o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul, João Marcelo Balsanelli, por redução e cancelamento de dívidas trabalhistas da Seara, do grupo JBS. A acusação foi feita pelo juiz Marcio Alexandre da Silva, responsável por homologar o acordo e executar os pagamentos aos trabalhadores antes de ser afastado do cargo.

O ICL teve acesso exclusivo ao documento no qual o juiz Marcio Alexandre acusa o desembargador João Marcelo de cometer 13 crimes, entre eles abuso de poder, peculato, impedimento de direito trabalhista, difamação e corrupção passiva. No pedido, o magistrado requisita que todos os processos relativos ao caso sejam juntados e julgados no Superior Tribunal de Justiça, onde o desembargador tem foro.

A dívida milionária da JBS com mais de três mil funcionários da empresa, localizada em Dourados, pode desaparecer. A justiça já bateu o martelo. Mandou pagar as indenizações por insalubridade e por horas trabalhadas indevidamente. Porém, no momento em que o dinheiro seria repassado aos trabalhadores, o juiz Marcio Alexandre, responsável pela causa, foi afastado do trabalho. À época, o desembargador João Marcelo acumulava os cargos de presidente e corregedor do TRT e foi ele próprio quem afastou o juiz. Em seguida, se declarou suspeito e acabou substituído. Dos cerca de R$ 150 milhões que deveriam ser pagos, apenas pouco mais de R$ 1 milhão foi desembolsado.

Fogo cruzado

O processo contra a JBS em Dourados deflagrou uma disputa interna no Tribunal Regional do Trabalho da 24ª região, com direito a gravação secreta de conversa e acusações falsas. Vítimas do fogo cruzado, os mais de três mil trabalhadores da JBS e ex-funcionários da empresa, que estavam a ponto de receber suas indenizações, viram o montante diminuir ou até mesmo desaparecer.

Segundo a denúncia-crime, o juiz Marcio Alexandre analisou um a um os 1.952 processos em que o cálculo da indenização foi refeito, depois que ele foi substituído, e constatou um prejuízo de R$ 29 bilhões aos trabalhadores e aos cofres públicos. Com uma indenização mais baixa, o trabalhador perde e o Estado também perde em arrecadação, tanto nas custas processuais quanto nas contribuições previdenciárias.

Enquanto a briga segue, a execução da dívida continua suspensa e o risco dos trabalhadores nunca mais verem a cor do dinheiro aumenta. Se o funcionário já foi demitido, ele tem que receber em um prazo de dois anos, contados a partir da promulgação da sentença. Se ainda estiver trabalhando na companhia, o prazo é de cinco anos.

Dos 3.180 trabalhadores que fazem parte da ação coletiva, 2.500 não estavam mais na JBS. Para eles, já se passou um ano e meio. O tempo está se esgotando. Em Campo Grande, uma outra negociação de direitos trabalhistas, com a mesma empresa, prescreveu e ninguém recebeu a indenização.

Indústria da Seara em Dourados – Foto: Reprodução/Divulgação

Afastamento suspeito

O juiz Marcio Alexandre da Silva era o titular da 2ª vara do Tribunal da 24ª região. Estava no comando do processo e já tinha todos os cálculos prontos para escalonar os pagamentos das indenizações quando foi acusado de práticas ilícitas e sumariamente afastado.

As acusações contra ele geraram um inquérito criminal e 23 processos administrativos, uma prática comum em casos de lawfare (uso do sistema jurídico para atacar adversários): empilhar processos contra a mesma pessoa para dificultar a defesa. Quem fez as acusações e abriu os processos foi o desembargador João Marcelo Balsanelli, na época presidente do Tribunal da 24ª Região.

Filha seria contratada pela JBS

A queda de braço tem detalhes dignos de cinema. Quando o juiz Marcio Alexandre começou a executar as dívidas, foi chamado para uma conversa com o desembargador e presidente do Tribunal. Ele não sabia, mas a conversa estava sendo gravada.

Nela, o juiz diz ao desembargador João Marcelo que se comentava, nos corredores do tribunal, que a filha do desembargador estava na bica de ser contratada pela JBS. João Marcelo confirmou que ela foi convidada, mas garantiu que não aceitou.

No momento em que o tribunal cobrava da empresa uma dívida trabalhista milionária, não soaria bem a filha do presidente ser contratada pela empresa. Ela recusou o convite em uma conversa de WhatsApp que só aconteceu uma semana depois do encontro com o juiz gravada às escondidas.

Segundo o juiz Marcio Alexandre, a gravação não tem toda a conversa. “Ele disse que a execução estava andando muito rápido e que eu devia tirar o pé das execuções”, disse o magistrado ao ICL.

A JBS é a maior fonte de empregos da cidade, com mais de cinco mil funcionários. O advogado do juiz Marcio Alexandre pediu uma perícia da gravação para tentar mostrar que o áudio foi editado. Ela não foi autorizada.

Mas ele descobriu que o desembargador João Marcelo teve ao menos duas reuniões com advogados da JBS, no gabinete da presidência do tribunal, sem registrar os encontros na agenda: um antes e outro depois da suspensão de todos os pagamentos da dívida, no dia 4 de maio de 2024.

Quando afastou o juiz do cargo, João Marcelo não indicou nenhum dos cinco juízes naturais — os que estavam na sequência hierárquica do tribunal e deveriam assumir o cargo. Ele nomeou outro juiz que logo suspendeu os pagamentos e pediu novo cálculo das dívidas. Foi como se tudo voltasse à estaca zero.

Um dos motivos alegados para refazer os cálculos foi que o acordo determinou que as queixas só seriam consideradas a partir de 2018, o que prejudicaria os trabalhadores que tinham casos anteriores. Mas depois que as dívidas foram recalculadas, não foi incluído caso algum anterior a 2018.

Enquanto o juiz Marcio Alexandre aguarda o julgamento dos mais de 20 processos administrativos, ele também passou por um mandado de busca. A Polícia Federal entrou na casa dele, no dia 14 de maio de 2025, perguntando pelo cofre que ele não tem. Os policiais saíram com um celular e um computador. O inquérito até hoje não virou ação criminal e nem foi arquivado.

O desembargador João Marcelo também pediu a quebra do sigilo bancário e telemático do juiz, mas a Advocacia Geral da União negou dizendo não ver indícios de irregularidade. Uma busca do COAF não encontrou nada de errado nas contas do juiz.

Magistrado é alvo de denúncias

Uma denúncia anônima acusou o magistrado, no ano passado, de entregar dinheiro em espécie ao perito Juliano Belei em uma padaria de Campo Grande. O perito é um profissional credenciado junto ao tribunal que ganha para fazer os cálculos das dívidas.

Juliano foi encarregado, no caso da JBS, de definir o quanto a empresa deveria pagar para cada funcionário. A insinuação foi de que o juiz Márcio Alexandre fazia um esquema de rachadinha com Juliano porque trabalhava com ele com frequência.

“A acusação”, conta o juiz, “diz que Juliano teria recebido R$ 267 mil em espécie, por ordem minha. Mas os depósitos estão na conta bancária em que ele recebia os honorários normalmente, o mesmo valor, parcelado e documentado”, disse o juiz.

O Conselho Superior de Justiça marcou, para o dia 18 deste mês, a audiência para o começo do julgamento do processo administrativo sobre a suposta entrega de dinheiro vivo na padaria. Até onde sabe o acusado, o Ministério Público não tem testemunhas de acusação para apresentar no processo.

O desembargador João Marcelo também acusou Marcio Alexandre de ter relação de parentesco com o perito Juliano, o que o advogado de Marcio provou não proceder. O desembargador também disse, no tribunal, que Juliano foi sócio do sogro de Marcio. Na verdade, Juliano trabalhou no escritório do sogro de Marcio quando estava recém formado e deixou a firma mais de dez anos antes de conhecer e trabalhar com o juiz.

Juiz quer defender-se e retomar o caso

O juiz Marcio Alexandre da Silva nasceu em Ubatuba (SP), e é o primeiro filho da família de quatro irmãos a ingressar em uma universidade. A mãe completou a quarta série e o pai a quinta. Ele entrou no tribunal do Mato Grosso do Sul como funcionário. Estudou, fez vestibular e com o salário, custeou a universidade. Depois de formado, fez concurso e conseguiu a vaga de juiz em São Paulo de onde, mais tarde, pediu transferência para Dourados, cidade da família de sua esposa.

“Estudei em escola pública a vida inteira”, diz, com a voz embargada. “Lutei muito para chegar onde eu estava. Não foi uma coisa que me deram, eu conquistei!”, afirmou. Indignado por ter sido afastado do cargo, e do caso, ele quer ser julgado. Quer o direito de apresentar provas e testemunhas para limpar o próprio nome e voltar ao trabalho. Se possível, retomar as execuções da JBS para os trabalhadores de Dourados.

Lesões, remédios e nenhum pagamento

Pessoas como Letícia Bregantini, que já não consegue calçar alguns pares de sapato porque um dos pés dela incha demais. Marisa Alves Correa Neto vive à base de remédios para as dores no ombro e no braço direitos. Já Cariaca Rosário Souza tenta, com ajuda da fisioterapia, reduzir as dores de coluna. As três têm problemas físicos decorrentes do trabalho que faziam na Seara, unidade industrial da JBS em Dourados (MS). Elas processaram a empresa e venceram na justiça. Só que, até o momento, não receberam o pagamento da indenização.

O ICL procurou o desembargador João Marcelo Balsanelli para que ele respondesse sobre a gravação clandestina da conversa com o juiz, os encontros com advogados da JBS fora da agenda, o motivo de seu afastamento voluntário da presidência do tribunal e a acusação de que o perito Juliano Belei teria sido sócio do sogro do juiz Márcio. A reportagem obteve a seguinte resposta:

“Todos os fatos mencionados nas perguntas encontram-se devidamente documentados nos autos de procedimentos administrativos regulamente instaurados. Por dever de cautela institucional, respeito ao devido processo legal e à proteção da própria instrução, não comentarei versões, ilações ou especulações veiculadas fora dos autos.”



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