Por Mariana Franco Ramos*
Nos últimos meses, dois processos multilaterais expuseram a contradição central da política ambiental global. Enquanto a ciência exige respostas rápidas e estruturais, as instituições encarregadas de coordená-las continuam presas a disputas geopolíticas que ora impulsionam, ora travam a agenda. A COP30, realizada em Belém, e a Cúpula do G20 em Joanesburgo, ambas lideradas por países do Sul Global, mostraram que avanços são possíveis – mas também expuseram limites que tendem a se aprofundar agora, com os Estados Unidos à frente do bloco das maiores economias do mundo.
Relatos diplomáticos e análises de bastidores da cúpula apontam que a declaração final trouxe linguagem climática mais ambiciosa do que o esperado, mesmo diante do boicote estadunidense e das investidas da Argentina para suavizar o texto. No encontro, o primeiro de líderes do grupo realizado na África, o governo anfitrião conseguiu sustentar uma agenda centrada em justiça, resiliência e cooperação internacional. O documento reconhece a natureza sistêmica da crise do clima, reforça a urgência da adaptação climática e reafirma compromissos com o Acordo de Paris – em contraste com o silêncio na área ambiental da última cúpula do G7, em junho.
A proximidade entre os eventos não foi apenas geopolítica ou simbólica. Como o G20 ocorreu enquanto as negociações da COP30 ainda estavam em andamento, temas debatidos em Belém circularam entre chancelerias e chefes de Estado nos dois espaços, fortalecendo a pressão por uma declaração mais alinhada às expectativas de países vulneráveis e de economias emergentes.
Na conferência do clima, a presidência brasileira conseguiu destravar um impasse de anos ao aprovar princípios orientadores de transição justa baseados em direitos humanos e participação social, com destaque para povos indígenas, comunidades locais, populações afrodescendentes, mulheres e trabalhadores. Os países também criaram, sob a Convenção do Clima, um novo mecanismo internacional de cooperação técnica para apoiar a implementação dessa agenda – uma forte demanda do Sul Global.
A convergência entre COP30 e G20 não é trivial. Belém ampliou a compreensão sobre quem deve estar no centro de uma transição justa. Da mesma forma, Joanesburgo reforçou a necessidade de transformar esse entendimento em política concreta, dando ênfase a temas historicamente negligenciados, como sistemas alimentares sustentáveis, proteção florestal e desigualdades na agricultura. Delegações destacaram ainda o reconhecimento conjunto de que dívida insustentável, vulnerabilidade e incapacidade de financiar adaptação compõem hoje um mesmo nó estrutural que limita a ação de muitos países.
Essa relação é mais política do que técnica. Nações altamente endividadas enfrentam juros mais altos, menor espaço fiscal e maior exposição a choques ambientais, criando um círculo vicioso que impede investimentos em mitigação e adaptação climática e no desenvolvimento sustentável de maneira mais ampla. Sem reformas que aliviem esse peso, qualquer esforço de transição justa corre o risco de permanecer restrito às capacidades dos poucos que podem financiá-la.
O próprio boicote dos Estados Unidos acabou produzindo um efeito político inesperado: sem a pressão norte-americana para diluir compromissos, vários países viram espaço para sustentar posições mais ambiciosas. O fato de a maioria dos membros ter mantido uma linguagem mais firme mesmo sem Washington à mesa indica que o eixo da diplomacia ambiental global já não depende exclusivamente da disposição estadunidense.
A força simbólica dos dois encontros, contudo, contrasta com limites estruturais persistentes. O G20 evitou mencionar a eliminação de subsídios fósseis ou a necessidade de transição para longe de petróleo, gás e carvão – um impasse que espelha o bloqueio observado na COP30. No campo financeiro, a lacuna é ainda maior: embora as economias do bloco reconheçam que o mundo precisará mobilizar “trilhões” para garantir desenvolvimento compatível com a estabilidade climática, nenhum novo compromisso público foi anunciado. Tampouco houve avanços em reformas estruturantes da arquitetura financeira internacional, que seguem emperradas pela resistência de alguns dos maiores acionistas.
Se há paralisia no plano global, o cenário doméstico brasileiro começa a se mover. Após defender na COP30 e no G20 a criação de um roadmap global de transição energética, o presidente Lula determinou que quatro ministérios apresentem, em sessenta dias, diretrizes para um mapa do caminho nacional, com redução planejada da dependência de combustíveis fósseis. O despacho, assinado em 8 de dezembro, também orienta a criação de um Fundo para a Transição Energética, financiado por parte das receitas de petróleo e gás.
Não é pouca coisa. Nesse momento em que o multilateralismo enfrenta turbulências crescentes, políticas domésticas podem se tornar um dos principais motores da transformação, sobretudo em grandes economias emergentes.
Quem vai ceder – e quem vai insistir?
Ao fim de 2025, uma pergunta atravessa a governança climática internacional: quem vai ceder – e em qual direção?
De um lado, países e organizações sociais exigem implementação, justiça e financiamento à altura da crise. De outro, governos e interesses econômicos resistem a abandonar o modelo fóssil e a redistribuir poder e recursos.
A Cúpula de Joanesburgo mostrou que ainda existe maioria disposta a defender a agenda climática no G20. A COP30, no coração da Amazônia, evidenciou que é possível colocar direitos humanos, povos indígenas e populações afrodescendentes no centro da transição justa. O despacho presidencial sobre o roadmap brasileiro indica que algumas sementes já começam a brotar no plano doméstico.
Em 2026, com o G20 sob a presidência dos Estados Unidos, saberemos se essas sementes serão sufocadas por uma tentativa de retorno ao passado ou se terão apoio suficiente para seguir crescendo, alimentadas pela persistência do Sul Global e pela pressão da sociedade civil.
O futuro da transição justa – no Brasil, na África do Sul e no mundo – dependerá menos de discursos e mais da capacidade de transformar esses sinais em infraestruturas políticas, financeiras e institucionais sólidas. É isso que estará em jogo quando os líderes do G20 se reunirem outra vez.
*Coordenadora de Comunicação da Plataforma CIPÓ
