Muito antes de a ciência moderna falar em mudança climática, formação dos continentes ou na mudança das montanhas ao longo de milhões de anos, um funcionário público da China medieval já havia formulado hipóteses surpreendentemente próximas do que hoje chamamos de geologia e climatologia.
Seu nome era Shen Kuo, e suas ideias, escritas no século XI, são a prova de que o conhecimento científico não veio somente do Ocidente.
Nascido em 1031, durante a dinastia Song, Shen Kuo foi um verdadeiro polímata: cientista, engenheiro, matemático, astrônomo, diplomata e estadista.
Mas é em seus estudos sobre a formação da Terra e as mudanças do clima ao longo do tempo que sua obra se destaca de forma quase desconcertante para um autor medieval.
Fósseis nas montanhas e o passado dos oceanos
Em uma época em que a maioria das explicações sobre a natureza ainda recorria a mitos ou eventos súbitos, Shen Kuo observou algo simples e revolucionário: conchas fósseis incrustadas em camadas rochosas no alto de montanhas, a centenas de quilômetros do mar. Para ele, aquilo só podia significar uma coisa: aquelas regiões haviam sido, em algum momento remoto, fundo de oceano.
A partir dessa constatação empírica, Shen formulou uma hipótese ousada: a paisagem da Terra não era fixa nem imutável. Montanhas se desgastavam lentamente, sedimentos eram carregados por rios e depositados em outras áreas, e o relevo se transformava ao longo de períodos imensos de tempo.
Era, na prática, uma teoria de geomorfologia, séculos antes de nomes como James Hutton ou Charles Lyell estabelecerem os fundamentos da geologia moderna na Europa.
Clima em transformação
Outro ponto notável de sua obra envolve o clima. Shen Kuo registrou a descoberta de bambus fossilizados em regiões secas e frias do norte da China, onde aquela planta não conseguia crescer em sua época.
Em vez de atribuir o fenômeno a exceções ou lendas, ele chegou a uma conclusão radical: o clima daquela região havia sido diferente no passado.
Com isso, Shen antecipou a ideia de que o clima da Terra muda ao longo do tempo, deslocando zonas úmidas e secas, quentes e frias.
Embora não falasse em causas globais como hoje, sua percepção rompeu com a visão estática da natureza. Em essência, ele descreveu um conceito inicial de mudança climática natural, quase mil anos antes de o tema entrar no vocabulário científico contemporâneo.
Ciência baseada em observação
O que torna Shen Kuo particularmente moderno não é apenas o conteúdo de suas ideias, mas seu método. Ele rejeitava explicações baseadas apenas na tradição ou na autoridade dos antigos, se mostrando um verdadeiro questionador.
Em arqueologia, por exemplo, criticava estudiosos que reconstruíam objetos rituais apenas com base em textos clássicos, sem examinar evidências materiais.
Para Shen, compreender o mundo exigia observação direta, comparação de dados e disposição para revisar certezas, iniciando um pensamento de uma metodologia científica. Esse espírito empírico aparece em toda a sua obra mais famosa, o Mengxi Bitan (“Ensaios do Riacho dos Sonhos”), um livro que reúne reflexões sobre astronomia, geologia, óptica, matemática, engenharia e fenômenos naturais.
Um gigante esquecido fora da Ásia
Apesar de sua importância, Shen Kuo permanece relativamente desconhecido fora dos círculos acadêmicos especializados. Enquanto cientistas europeus posteriores são celebrados como pioneiros do pensamento científico, figuras como Shen revelam que a ciência avançada também floresceu no Oriente, de forma independente e muitas vezes anterior.
Seu trabalho mostra que ideias centrais para entender a Terra como o tempo profundo, a transformação lenta do relevo e a variação climática já estavam sendo formuladas na China do século XI, em um contexto intelectual sofisticado e profundamente conectado à administração do Estado.
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